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O filme brasileiro de gênero dramático, com texto de Plínio Marcos (1935-99), lançado em 2006 estreou em setembro de 2007. Querô - o filme, conta a história de um jovem que não sabe quem é seu pai e Piedade, sua mãe prostituta, que morreu quando o menino ainda era um bebê, fazendo do querosene seu veneno, eleito, tomando-o em gesto de desespero dando à luz na hora da morte. O menino é criado pela cafetina do bordel, no prostíbulo onde sua mãe morava na cidade de Santos, crescendo em meio à violenta realidade das ruas da cidade paulista. Preso por cometer delitos, tem sua vida marcada pelos maus-tratos que recebe na Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM). A partir daí vai ser um menino da vida, das ruas, sem saídas. O garoto não sobrevive, mas deixa o lastro de quem lutou contra a opressão e os valores da sociedade capitalista que o descarta. Contando em seu elenco com, Leandro Carvalho “Bolacha Preta”; Eduardo Chagas “Sabará”; Milhem Cortaz “Sr. Edgar”; Nildo Ferreira “Mosca”; Ailton Graça “Brandão”; Cláudia Juliana “Gina”; Ângela Leal “Violeta”; Giulio Lopes “Delegado”; Sílvia Lourenço “Autoridade”; Igor Maximilliano “Tainha”; Maria Luisa Mendonça “Piedade”; Maxwell Nascimento “Querô”; Eliseu Paranhos “Nana”, o filme retrata a dura realidade daquele que tenta escrever sua história em meio às linhas mal traçadas linhas deixadas pelo outro.
Querô é um adolescente de aproximadamente 14 anos, que tem marcado em sua história a trajetória de rua, a FEBEM, o abandono... Dentre variadas dificuldades sociais, uma mulher, puta de um bordel, dá à luz a um bebê, que marcado por significantes como “filho de uma puta”, tem sua história de vida marcada pela impossibilidade da junção entre a maternagem e a vida de uma puta, pois, como já nos apontou Miller, a criança divide mãe e mulher. O filme retrata que a mãe ao escolher ter o filho é expulsa pela cafetina do bordel no qual tirava seu sustento. Humilhada e sem saber o que fazer diante das palavras da cafetina de que enfiasse a criança no “cu”, significante que atravessa toda a história de Querô, a mãe inicia a inscrição daquela criança em seu desejo. Seu primeiro banho pode-se pensá-lo, não como um banho de linguagem, no sentido de inscrevê-lo na cultura, mas como um banho atuado nas lágrimas de uma mãe, que em seu ato de embebedar-se o abandona na porta do bordel da qual foi expulsa. LACAN nos ensina que o corpo é simbólico, habitado pela linguagem, e apenas quando investida pela palavra do Outro é que a imagem corporal ganha consistência enquanto um corpo, pois é a linguagem capaz de estruturar o que há mais subjetivo no humano. Parido por uma puta de bordel, e criado por outra, Querô não ultrapassa os significantes, “cu”, “puta”, “querosene” que pouco deslizam e trarão efeitos nefastos para sua vida. Pode-se pensar assim como Lacan de que sempre há oferta de significantes nas famílias, mas, muitas vezes, estes podem ser violentos e terríveis (FERREIRA, 2000). Sua mãe biológica era “uma puta que bebia querosene, daí seu nome próprio, Jerônimo, ser substituído por Querô, um apelido, nome de uma coisa, querosene. Ora, o nome próprio não é como substantivo comum, não se faz a partir de nada senão de quem nomeia. Algo do doador do nome passa pelo nome, e é nisso que reside o desejo do Outro com o qual o sujeito deve se reencontrar. O nome, não diz senão da filiação de um sujeito. (POMIER, 1998, citado por FERREIRA, 2001). Filho de uma puta que bebia querosene, por isso, Querô. Testemunha e vítima dos atos maternos, Querô coloca a trabalho aqueles que se dedicam a pensar sobre a relação do sujeito e sua inscrição ou não no desejo do Outro. Sua relação com os significantes que lhe foram oferecidos desde o seu nascimento, assim como a escolha que um sujeito tem a fazer diante disso, mesmo que uma escolha forçada, como a expressa na fala da cafetina: “Que caralho quando te peguei pra criar”, ou na própria voz de Querô: “a mulher que me criou me batia, tenho muita raiva”. Filho de uma puta, raivoso, seu destino já estava traçado na (mal)dição daquela que deveria tê-lo acolhido, portanto deveria ser “enfiado no cu”, como dito em seu nascimento. Esse era o seu “destino”.
1 Trabalho realizado no ano de 2007, no curso de especialização em Saúde Mental e Psicanálise do Centro Universitário Newton Paiva, na disciplina de Psicologia Jurídica.
2 Que serve, também, como origem do apelido para o recém nascido. |
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Pode-se pensar ainda, sobre a situação das crianças e adolescentes que tem a rua como palco que dá consistência para as atuações do sujeito. FERREIRA (2001) expõe as diferenças existentes entre a rua e a casa, sendo a primeira, evocação de sentimentos negativos e desordeiros, de ninguém, e a segunda o lugar da intimidade, do pessoal, do familiar. Querô e seus amigos denotam isso em suas falas “na rua sou bicho solto”. Ao dizerem disso não estariam denunciando o fato de ser de ninguém, ou seja, de não estarem inscritos no desejo de um Outro? Diante de sua ruptura familiar, ao viver na rua, livre de rotinas, expondo-se sem limites em um excesso sem contenção, Querô se envolve em atos infracionais - rouba um “gringo”, fato que o leva à FEBEM - juntamente com outros meninos que convivia na rua, já que o bando passa a ocupar funções não desempenhadas pela família. Mas seria Querô um menino de rua ou um menino na rua? Inicialmente podia-se pensar Querô como um dos meninos na rua, já que estes, segundo FERREIRA (2001), trabalham na rua, lavam carros, coletam papéis, estabelecem um vinculo grupal entre eles diferentemente dos meninos de rua, que em bandos percebem o trabalho como um contra valor, e, sem nenhum contato familiar passam a estabelecer uma relação de total dependência com um líder muitas vezes despótico, ao qual cabe toda a decisão dentro do bando. No filme, isso é demonstrado numa cena em que há uma divisão desigual do produto de um furto, cabendo ao líder do bando a maior parte, seja por sua habilidade e tempo de vivência na rua ou possuir uma arma que lhe outorgava o direito à mais-valia daquele “trabalho”. Tragado pelo imperativo de gozo do consumismo capitalista, Querô envolve-se em roubos, usando o dinheiro conseguido para comprar roupas “da moda, de marca”. Segundo FERREIRA (2001) em seu livro “Os meninos e a Rua” a marca vem como o real inscrito no corpo, seja nos modos de se vestir, comportar, pois para ela a vivência na rua aponta para uma designificação de valores diante do excesso infindável, restando apenas o corpo para inscrição do real, real da sobrevivência quando tudo o mais aponta para a morte, pois denunciado à polícia pelo líder do bando, Querô é enviado pela primeira vez à FEBEM, que numa noção de assepsia, livra o social de suas mazelas, os meninos são recolhidos, pois sendo a rua de ninguém, os meninos da rua também o são, restando-lhes a intervenção do estado. O que se presencia em Querô é sua trajetória de menino na rua para menino de rua, um menino de ninguém, já que o próprio significante “menino de rua” carrega consigo a idéia de não pertencimento.
Ao chegar numa instituição manicomial, os produtos de higiene pessoal dados a Querô, o banho tomado, o cabelo raspado, uniformizado, a assepsia, etc., o despe de sua subjetividade, pois a lógica manicomial presente nessas instituições adequam o sujeito a um programa de vida imposto fora de qualquer expressão subjetiva (VIAGNÒ, 1999). Enfim, isso vem escancarar o que há tempos ficou escamoteado sob a égide dos cuidados e proteção: a lógica excludente e segregadora dessas Instituições Totais (GOFFMAN, 1974), onde não há espaço para a palavra, mas apenas para os atos frente aos imperativos de um Outro gozador que não está submetido à lei, e, nesse sentido pode-se concebê-la como uma instituição do real. Institucionalizado, Querô entra em conflito com outros internos, pois zombavam do motivo pelo qual seu apelido era Querô - sua mãe bebia querosene. Bate muito em um dos internos, motivo pelo qual passa a ser ameaçado por um bando rival. Diante da ameaça de ser molestado diz ser “sujeito homem”, parece desconhecer que num lugar sem lei não existe distinção entre os sexos.É ameaçado, e neste ponto percebemos os significantes que retornam no real como algo insuportável para Querô: “Vamos comer o seu cu”, “seu viadinho”. O significante cu retorna fazendo Querô pensar em várias situações de sua vida, questionando sobre sua existência e sobre o fato da mãe tê-lo colocado no mundo, culpando-a pelo que ele havia se tornado. É molestado por vários jovens, tratado pela enfermagem, mas nada quis dizer sobre o fato, calando-se teria ele se igualado à mãe tornando-se a “puta” da instituição, ou o “dadeiro de FEBEM” como apontado por um dos internos? O fracasso das instituições totais, veladas sobre os significantes de proteção e cuidados ao menor, é escancarado pela trajetória de Querô a partir do momento em que mostra os imperativos institucionais, seja no estabelecimento da hora de dormir, comer, ver TV ou até mesmo na falta de medicamentos para cuidar dos ferimentos de Querô logo após ter sido molestado.
Repetindo, envolve-se em outra desavença, agora com o carcereiro, ao sustentar seu lugar de sujeito de desejo e não compactuar com a farsa institucional retratada no filme que era preparada com falsas oficinas de arte e educação para receber a visita de órgãos fiscalizadores. Nesse momento Querô diz de seu desejo de “comprar uma arma, furando com todo ideal de reeducação falsamente proposto pela Instituição, e conquistando a ira de um dos “cuidadores”, sendo induzido pela massa de jovens internos a esfaqueá-lo. Esfaqueia o cuidador/carcereiro, momento no qual os jovens se rebelam, quebram a instituição fugindo em massa. Pode-se refletir nesse ato, como uma conformação do espaço institucional à rua, os jovens quebram, destroem, apedrejam, aquilo que como a rua passa a ser de ninguém. Mas por que destroem aquilo que foi feito para “acolhê-los”? Isso não é senão a repetição na transferência, numa tentativa falha de simbolização onde a palavra não alcança resta apenas o ato deixando claro a relação utilitária entre jovem - instituição (FERREIRA, 2001).
FREUD (1921) em seu trabalho Psicologia de Grupo e Análise do Eu, já apontava para o sentimento de poder e onipotência que um indivíduo pode adquirir dentro de um grupo, acreditando-se invencível, sinalizando, também, que num grupo o indivíduo torna-se altamente sugestionável, ao analisar o efeito da massa sobre o sujeito.
Após a fuga, Querô retorna ao bordel sendo recebido por um homossexual, que lhe propõe uma noite de sexo em troca de roupas e comida. Querô atua, novamente, espancando-o, pois isso lhe remetia a questões próprias de sua vida: ter sido a “puta da FEBEM”, “o dadeiro de FEBEM” aquele cujo “cu” foi raptado para servir ao gozo do Outro. Então, vai morar em um cortiço onde foi acolhido por uma senhora que cumpria a função de maternagem, o acolhia, aconselhava, lavava suas roupas, conseguindo até mesmo levá-lo para igreja, onde ele se apaixona por uma jovem, que o nomeia Jerônimo, o inscrevendo em seu desejo. Inicia, à partir desse momento um trabalho informal e novamente é aprisionado pela impossibilidade real de presentear a jovem em seu aniversário com uma caixinha de música. Como solução vê no jogo de bilhar sua chance de conseguir o presente para a amada. Joga bilhar apostando aquilo que não tinha, por tentar oferecer à jovem aquilo que até então não tinha também, uma inscrição no desejo do Outro. Envolve-se em uma confusão deparando-se novamente com o policial que o apreendeu pela primeira vez, e que lhe pede um preço por sua liberdade. Sem saber o que fazer, ao reencontrar com o jovem “mosca”, nome também coisificado, apelido de acesso a um bando, que denuncia o lugar de coisa que ocupava na relação com o Outro, chamado impróprio (FERREIRA, 2001). Percebe-se ser um nome um tanto quanto sugestivo para aquele que vivia na FEBEM lavando os vasos sanitários, uma mosca para a qual sobrava apenas o dejeto do Outro. Mas que, ao reencontrar Querô, diz: “aqui sou bandido não sou aquele que ficava limpando merda”, mas em num ato de distração, Querô o rouba, ficando com seu dinheiro, suas drogas e sua arma. Após procura a jovem por quem se apaixonara dizendo: “eu queria ser esse cara, o Jerônimo da Lica, mas Jerônimo morreu quem tá aqui é o Querô. Se não posso ser o Jerônimo da Lica não quero ser ninguém”. Deixa uma carta para a senhora que cuidou dele no cortiço dizendo: “Gina, tu foi uma mãe pra mim”. Comete homicídio, matando o policial que o chantageava, para o qual deveria pagar o preço por sua liberdade. È baleado, também, e vai de encontro á sua morte, anunciada desde o momento em que marca seu lugar no mundo enquanto Querô.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, T. (2001) Os meninos e a rua: uma interpelação à psicanálise. Belo Horizonte, Autêntica.
_______________ (2000). A escrita da Clínica: psicanálise com crianças. 2º ed. Belo Horizonte: Autêntica.
FREUD, S. (1921) Psicologia de grupo e análise do eu. ESB, Vol. VIII; Rio de Janeiro: Imago editora 1976.
GOFFMAN, E. (1974) Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Ed. Perspectiva.
LACAN, J. (2003) Seminário livro XI - Os quatro conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
MILLER, J. (1997) “A criança entre a mulher e a mãe”. Revista Opção Lacaniana. VIGANÓ, C. (1999) “A construção do caso clínico em psicanálise”. In: Curinga. Belo Horizonte: EBP-MG, n. 13, p. 50-59.
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