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Este texto se propõe a fazer algumas considerações sobre a escolha, quase que
universal no serviço público, de cuidar dos usuários do sistema de saúde mental por meio de
equipes interdisciplinares. Não é raro com que pacientes de difícil manejo coloquem em
xeque a equipe, frequentemente levando-a a buscar ajuda externa, e promovendo uma
reinscrição dos papéis dos diferentes membros da equipe.
Discorrer sobre grupos traz, conceitualmente, alguns problemas. Conforme a
definição e o contexto escolhidos serão recortados diferentes universos grupais. Com relação
a este texto, será estabelecido como sendo nosso universo as equipes interdisciplinares
responsáveis pelo atendimento a pacientes em instituições psiquiátricas, constituídas por
profissionais de diferentes formações (psiquiatras, assistentes sociais, psicólogos,
psicanalistas, terapeutas ocupacionais, etc), e apresentando uma coordenação única.
Frequentemente observa-se nessas equipes uma hierarquia, apesar de nem sempre esta ser
explicitada de forma clara.
Porém, apesar da delimitação desse objeto específico _ a equipe interdisciplinar
_ , esta se situará mais como pano de fundo do que propriamente como tema único. Na
verdade, toda a problemática referente à comunidade, aos laços sociais e à vida-em-comum
estará aqui em evidência. Normalmente considera-se grupo como o intermediário entre o
indivíduo e o social, dando-se a ele uma ênfase maior no que se refere a sua complexidade
horizontal, deixando a perspectiva histórica para quando se tematiza o social. Mas no que se
refere à totalidade, ou ao ideal de totalização, tanto os grupos quanto as comunidades em um
sentido mais amplo nos colocam problemas semelhantes.
1 - A COMUNICAÇÃO DENTRO DA EQUIPE
Em um texto onde se propõe teorizar sobre a interdisciplinaridade em saúde
mental, Eduardo Mourão Vasconcelos propõe uma classificação das diferentes formas de se
estruturarem as equipes (VASCONCELOS, 1997). O texto defende a não ascendência de
qualquer das profissões sobre as outras, valorizando a diferença e a desobstrução dos canais
de comunicação como a melhor opção para o tratamento do paciente psiquiátrico.
O texto é sem dúvida bem intencionado, estando em consonância com o
movimento de desinstitucionalização da doença mental. Porém algumas ressalvas podem ser
feitas. Basicamente, podem ser colocadas em questão a forma como o autor entende a comunicação dentro dos grupos, e a maneira como ele considera o que seria o objeto a ser
trabalhado pela equipe.
Segundo o autor, o objeto a ser trabalhado (no nosso caso específico o paciente
em tratamento), seria o mesmo para todos os membros da equipe. Partindo-se desse princípio,
já que o objeto é comum, a comunicação entre os diferentes discursos que compõem a equipe
se colocaria dentro do horizonte da possibilidade. Um bom grupo, então, seria aquele que
viabilizasse essa comunicação, de modo que alguma inteligibilidade se constituísse entre os
membros, podendo possibilitar inclusive, em situações ideais, a construção de um discurso
novo que fosse compreensível por todos os participantes da equipe.
Sob a ótica da psicanálise, essa postura é complicada. Ela é entendida como
estando no registro dos ideais. E se é verdade que um ideal comum pode manter unido o
grupo, é no campo do engodo que Freud o situa. Em termos psicanalíticos, o emissor recebe
sua própria mensagem invertida, nisso consistindo a comunicação (LACAN, 1955/1988).
A perspectiva de uma comunicação possível (que seria o objetivo a ser alcançado
segundo Eduardo Mourão Vasconcelos) pressupõe que cada membro da equipe seria parte
finita de um todo finito. Entre esses campos finitos e distintos se estabeleceria então de forma
confiável uma troca de informações. Comunicação, assim, pressupõe limites, e uma
interlocução inteligível entre as partes estanques. Porém, para Freud, a psique é extensa, ela
não é fechada em uma forma. A finitude nada mais é do que a consequência de uma
construção psíquica necessária, que nos referencia, como ilusão-âncora, na constituição da
realidade.
Em uma equipe interdisciplinar vários discursos estão envolvidos, cada qual com
seu objeto específico: para o discurso psiquiátrico o objeto seria a alteração orgânica, para o
serviço social o comprometimento familiar, para o psicanalista o desejo, e assim por diante. A
comunicação dentro da equipe, portanto, da mesma forma que a comunicação entre os
homens em geral, está no registro do impossível. Isso não significa que a equipe não possa
funcionar e produzir efeitos, mas as razões desses efeitos estão em outro lugar.
Segundo Célio Garcia, a equipe, ao se formar, e ao estabelecer normas iniciais
mínimas, seria como um "programa" (GARCIA, 1997, p. 7) semelhante ao de um
computador. Só que ao ser acionado, as respostas dadas por esse "programa" seriam
determinadas por todas as variáveis, apreensíveis ou não, que cercam a demanda que lhe foi
feita. Os saberes e os discursos que irão se constituir a posteriori não só não podem ser
extraídos do "programa" básico, como também não podem ser fechados ou identificados a
uma inteligibilidade única. Os efeitos serão diferenciados e particulares à cada discurso envolvido, o que não implica que a equipe não tenha conseguido trabalhar de forma coesa.
Fica então a pergunta: o que terá guiado a equipe, fazendo-a funcionar como se pertencesse a
um movimento único?
2 - IDENTIFICAÇÃO
A estrutura que uma equipe interdisciplinar vai adquirir, a distribuição do poder
entre seus membros, as interrelações que vão se estabelecer, o discurso ("hegemônico" ou
não) que irá se constituir ao longo do tempo e a partir das dificuldades e impasses que cada
paciente irá suscitar, serão extremamente variáveis. No caso feliz de equipes estruturalmente
pouco rígidas e em interação com os distúrbios externos, sua maleabilidade pode ser muito
grande. Fica difícil classificar o funcionamento das equipes baseado apenas nos saberes
instituídos previamente envolvidos, como se pudéssemos nos abstrair da história pessoal de
cada integrante, das relações pessoais que irão se formar, do contexto institucional da qual
esta faz parte e do engajamento político que ela e seus membros irão adquirir. O que faz uma
equipe funcionar como Um, ou pelo menos estabelecer aqueles momentos em que o grupo vai
se perceber como fazendo parte de um movimento unívoco, não está subsumida a uma mera
vontade política prévia ou a uma boa carta de intenções, apesar de com certeza esses fatores
também terem sua importância.
Para Freud, algo de um traço identificatório é o que fará o grupo funcionar como
tal. Grupo aqui entendido como sendo distinto de um simples grupo-tarefa (onde cada
membro desempenharia as atividades que previamente lhe foram designadas sem nenhuma
implicação subjetiva com o que está sendo feito).
Porém, de que ordem é essa marca ou traço identificatório? Se ela for da ordem de
um ideal imaginário, o grupo vai se movimentar com a sensação de que está realmente
fazendo Um, com a crença de que existe alguma coisa objetivável, que torna todos iguais
frente a essa referência palpável. Nesse grupo a comunicação seria vista como possível. O
conflito, a diferença, a cisão, seria empurrada para além de seus limites e corporificada em
objetos externos, que passariam a representar, do lado de fora, aquilo que foi expulso do
interior.
Ao trabalhar a identificação, Freud nos diz que o Um é duplo. O sujeito é cindido,
dividido, não reflexivo. É impossível fazer Um do que não é idêntico a si.
Um grupo movido por um ideal imaginário será formado por indivíduos
portadores de positividade (idênticos a si), e articulados em torno de uma imagem que os
unifica, dando a esse ajuntamento de pessoas uma unidade relativamente estável e
tranquilizadora. Porém, o paciente mental, por ser sujeito (e não indivíduo), é um "objeto"
complicado de se manusear. Ele se recusa a permanecer em posição passiva, e age sobre o
grupo, desestabilizando-o. O paciente traz à cena a divisão que tinha sido empurrada para as
fronteiras do grupo, obrigando a equipe a repensar suas ações durante o momento mesmo em
que estão sendo efetuadas. O paciente retira o grupo da perspectiva moral e coloca-o no
registro ético.
A partir do momento em que a divisão é trazida para dentro do grupo, o objeto
sobre o qual se estava trabalhando _ a esquizofrenia e sua desagregação _ de repente tornase
uma característica do próprio grupo. De Uno, ele passa a se ver como múltiplo,
desagregado, e um imperativo ético aí se coloca: é necessário saber o que move sua ação. O
grupo, de terapeuta, torna-se paciente de si mesmo.
3 - ÉTICA
Para Freud o mito do pai primevo contém estrutura de verdade. Ele está na origem
não apenas do social, mas também do pensamento.
Podemos pensar esse mito pelo viés da ruptura. Quando aplicada aos grupos, a
verdade aí envolvida seria o conflito ou o que não se encaixa no funcionamento visando às
regras, à manutenção do status quo social.
A ética estaria vinculada a esta ruptura, onde a definição prévia de valores fica
suspensa, e o movimento do grupo, meio à deriva no que concerne à moral, é obrigado a se
repensar e a se redefinir durante o próprio movimento. Quando o grupo funciona em termos
éticos, ele é criativo, no sentido em que instaura uma ação no mesmo instante em que a avalia,
em que a julga. Nesse momento, que não acontece sem angústia, uma verdade (entendida
como furo no saber) se presentifica, e o grupo age enquanto sujeito, deixando de ser um mero
ajuntamento de profissionais.
Um grupo burocrático, que apenas cumpre uma tarefa, não está comprometido
com a verdade. Ele funciona segundo normas pré-estabelecidas, e "a regra não garante a
Verdade" (GARCIA, 1994, p. 48). O processo de uma verdade, que implica em uma postura
ética, ocorre quando o grupo se vê obrigado a romper com o contexto pré-estabelecido que o
definia, e a se redefinir. O campo é ético quando a ação e o pensar-se se dão juntos,
confundindo-se um com o outro.
4 - ACONTECIMENTO
Um grupo-tarefa, que burocraticamente cumpre as atividades previamente
estabelecidas, o que o faz funcionar de forma unitária é uma estrutura previamente
estabelecida. Ela é o que lhe dá unidade.
Um acontecimento1, no sentido em que é proposto por Alain Badiou (BADIOU,
1994), seria o disfuncionamento ou o distúrbio nesse regime. O acontecimento desagrega por
um certo momento a unidade inicial fornecida por essa estrutura prévia, provocando pânico.
Durante sua vigência o grupo se vê obrigado a se repensar enquanto ação, e a agir ao mesmo
tempo que tenta compreender por que age.
Sob a égide de um acontecimento, o grupo é interpelado a produzir um discurso
novo. Esse discurso, se fiel ao acontecimento, será comum a todos os membros da equipe.
Isso não implica que todos vão estar compreendendo as palavras constituidoras desse discurso
da mesma forma, isto é, não implica que a comunicação vai passar a existir. Mas esse discurso
novo produzirá efeitos, ou dará inteligibilidade ao acontecimento, mesmo que diferenciada
para cada um dos membros da equipe. Enquanto o grupo estiver na vigência do acontecimento
à qual o discurso é fiel, essa fidelidade dará ao grupo algum tipo de unidade. Considerando-se
que o que permite essa união é da ordem de um traço, o grupo, apesar de unido, vai funcionar
como sujeito, e portanto cindido
O que dará a um evento qualquer o estatuto de acontecimento é muito difícil dizer.
Talvez seja um momento de pânico, onde o grupo se vê defrontado com a sua falibilidade2.
Ou talvez o contrário, quando o grupo se vê arrebatado por algo que esteja dando certo, que
produza efeitos, que propicia uma situação nova e rica de experiências. Um acontecimento é
um corte, uma ruptura dentro de uma engrenagem em movimento uniforme, reescrevendo
aquela engrenagem de uma outra forma, e dando à cada peça um novo sentido. Seguindo
Badiou, a verdade de um acontecimento é "o processo real de uma fidelidade". Ela é aquilo
que a fidelidade produziria se um dia ela conseguisse seu intento. Confundindo-se com o
1Événement, em françês, tendo sido traduzido no texto de Badiou por "evento". Posteriormente, considerou-se
"acontecimento" uma tradução mais adequada.
2"Quando o grupo parece mais ameaçado, por ocasião de um momento de pânico, é aí então que há grupo!" (GARCIA, 1994, p. 59).
movimento de transformação que se opera enquanto a fidelidade persiste, pode-se dizer que o
grupo, durante esse tempo, estará funcionando enquanto sujeito, já que este é "o suporte de
uma fidelidade. Logo, o suporte de um processo de verdade"(BADIOU, 1994, p. 110). Podese
dizer também que o processo de verdade induz um sujeito, enquanto suporte necessário de
seu próprio advento.
Durante esse momento em que o grupo se torna sujeito, ele ganha imortalidade,
tornando-se diferente de um animal ou de uma engrenagem. E ele continuará imortal
enquanto perseverar no processo de verdade.
5 - SUJEITO
Ao estudarmos grupos, imediatamente nos vemos defrontados com toda a
problemática que concerne ao social. A disciplina que explicitamente tem como objeto o
social é a sociologia. Essa disciplina, ao denunciar a mentira das palavras e das ideologias que
norteiam o social, no fundo anseia por se propor como a abordagem confiável que descobriria
as palavras perfeitas que se adequariam sem falsidades ao seu objeto de estudo, o social
(GARCIA, 1994, p. 49). A sociologia denuncia a inadequação, para se propor a seguir,
ilusoriamente, como o caminho para a descoberta da adequação perdida. Ela se encontra no
campo do Um.
Se quisermos resgatar a discussão sobre o social por meio da psicanálise, temos
que reencontrar a carência, o que é falhado, cindido. Temos que reencontrar, no movimento
do grupo, o sujeito.
Para a psicanálise o sujeito não pode ser identificado à individualidade. Ele fica
apenso entre a imanência e algo que lhe transcende. Também não pode ser identificado à
unidade, pois ele não faz Um, não é idêntico a si mesmo. O Um, no que se refere à inscrição
do sujeito, é da ordem do múltiplo, da multiplicidade de possibilidades de inscrições. A
ruptura que engendra um processo de verdade faz emergir um sujeito, momentâneo, que se
conserva enquanto o grupo (no caso, grupo-sujeito) se mantém no movimento de ruptura.
Durante esse processo o que mantém o grupo unido, que é da ordem da identificação, não
existe objetivamente a priori, mas trata-se de uma marca que se escreve (ou se reescreve)
durante o próprio processo. O semblante final dessa marca só irá se constituir como forma
acabada quando o processo tiver se extinguido, quando o grupo voltar a ser um grupo-tarefa,
aquele que apenas responde a preceitos objetivamente definidos, e portanto fora do campo
ético.
Assim, à guisa de conclusão, podemos aventar que para que um grupo seja
terapêutico, isto é, para que ele seja capaz de permear aos pacientes que se propõe tratar a sua
existência enquanto sujeitos (e não meramente assujeitados), o grupo tem que manter um
certo grau de errância, de não domínio sobre seus atos. As referências que vão balizar seu
funcionamento não podem estar subsumidas a qualquer saber previamente totalizado. A
conclusão de seu trabalho, a delimitação precisa dos papéis que cada um de seus membros vai
adquirir, assim como o modelo terapêutico a ser seguido com cada paciente deve estar sempre
no registro do a ser descoberto. A verdade de uma equipe interdisciplinar, assim como
daqueles à quem ela se propõe a tratar, é reconstruída a cada novo passo do movimento
grupal, na qual ambos _ o grupo e os pacientes _ estão igualmente concernidos.
6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADIOU, A. (1994) Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
FIGUEIREDO, A. C. (1997) Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
FREUD, S. (1921/1980) "Psicologia de grupo e a análise do ego", in ESB, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.
GARCIA, C. (1994) Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta.
_________. (1997) Clínica do social. Belo Horizonte: mestrado de psicologia da UFMG.
LACAN, J. (1955-1956/1988) O seminário, Livro 3, segunda edição corrigida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MILNER, J.-C. (1996) A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
VASCONCELOS, E. M. (1997) "Desinstitucionalização e interdisciplinaridade em saúde mental" in Cadernos IPUB,
n° 7. Rio de Janeiro.
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