ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 11 Maio à Agosto de 2010
 
   
 
   
  Artigos  
   
     
 

O delírio de hipernormalidade como estabilizador de uma psicose
THE HYPER NORMALITY DELIRIUM LIKE ONE STABILIZER OF PSYCHOSIS

 
 


Aline Cristina Rosa

Graduação em Psicologia pela UFMG, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, área Estudos Psicanalíticos.
E-mail : alinrosa@gmail.com
Celular: (31) 8898-3103

 

 
 

Resumo: O presente artigo trata da construção do caso clínico de uma paciente, atendida em um ambulatório de psiquiatria e psicanálise, e da análise teórica do mesmo, a partir da teoria psicanalítica. “Eu tenho depressão”. Com esta fala Raquel se apresenta. Uma jovem de 25 anos. Com um discurso colado aos ditos do Outro, uma queixa de estranheza em relação a si mesma e uma história anterior de uso de neurolépticos, esta paciente suscita, a partir de algumas sessões, uma dúvida diagnóstica: tratar-se ia de uma neurose ou de uma psicose? Ao tentar se emancipar da norma familiar, colocando em causa sua adesão ao que dela se esperava, esta paciente se desestabiliza e passa a apresentar fenômenos alucinatórios e idéias persecutórias. Utilizando-se de próteses imaginárias, que compensam a ausência de simbolização, ela retorna ao comportamento reconhecido como normal pela família, marcado pela observância contínua das práticas religiosas e conseguindo, de alguma maneira, apesar da ausência da metáfora paterna, restabilizar-se. Trabalhamos, neste caso, com a hipótese de que esta paciente se identifica à norma; identificação que funcionaria como uma forma de suplência, que se apresenta como um delírio de hipernormalidade.

Palavras-chave:
Delírio de Hipernormalidade, Psicose, Debilidade.

Abstract:
This article approach the construction of clinical case of a patient treated in a psychiatry and psychoanalysis ambulatory and theoretical analysis of it, starting from the psychoanalytic theory. "I have depression." With this speech presents Rachel. A young girl of 25 years, with a discourse pasted in the dictum of the Other, an complaint of strangeness in relation herself and a previous history of use of neuroleptics, the patient inspires, from a few sessions, a diagnostic uncertainty: it was a neurosis or a psychosis? When trying to emancipate itself from the rule family, puts into question their adherence to what is expected from her, this patient is destabilized and starts to present hallucinations phenomena and persecutory ideas. Using imaginary prostheses, which compensate for the absence of symbolization, she returns to normal behavior as recognized by family, marked by continuous observance of religious practices and getting to restabilize herself, still the absence of the paternal metaphor. We work in this case, the hypothesis that this patient identifies herself with the rule and this identification would work as a way of substitution, which presents itself as a hyper normality delirium.

Keywords:
Hyper normality delirium, Psychosis, Debility.

O presente trabalho trata do caso clínico de uma paciente atendida em um ambulatório de psiquiatria e psicologia que chega ao serviço com diagnóstico de depressão e usando medicação antipsicótica. Após alguns atendimentos se configura uma situação de dúvida diagnóstica: estávamos lidando mesmo com uma psicose? A paciente não apresentava nenhuma espécie de fenômeno elementar e em seu discurso não se evidenciava nada que fosse da ordem da psicose. Não havia fenômenos alucinatórios, delírios, a linguagem não revelava os efeitos clínicos da psicose. Diante da ausência de dados que justificassem o uso da medicação neuroléptica, esta foi suspensa.

Raquel1 é uma jovem de 27 anos, evangélica, cujo atendimento psicanalítico iniciou-se em 2004. Bastante tímida, retraída, está sempre com um semblante de tristeza, evitando o olhar da analista. Seu discurso apresenta-se bastante débil. Para falar de si, a paciente retoma os ditos de outros, repete as falas da mãe, as regras da igreja e diz de como é necessário que ela as siga. A paciente apresenta uma fala em que as palavras não remetem a nenhum significado novo, ela não confere maleabilidade à significação. Utiliza uma linguagem rica em adágios populares e versículos bíblicos e um discurso constituído de idéias convencionais. Diante do silêncio da analista esta faz o papel do que se espera de um interlocutor: conforta a si mesma, sugere condutas, ou concorda consigo mesma. Nada do que foge à regra pode ser suportado.

Ao longo dos atendimentos, com a instituição de um espaço em que ela pudesse falar livremente, Raquel iniciou um movimento de questionamento das regras religiosas, das imposições paternas, questionamento possivelmente suscitada pelo processo de tratamento. Começa a criticar os conselhos da mãe, a não obedecer suas exigências, como fazia antes. Entretanto, algo de mais novo ainda, surge: ela relata que os vizinhos a estão vigiando e falando mal dela, ouve crianças chamando-a de nomes chulos. Os barulhos na casa começam a irritá-la profundamente e tornam-se signos de que ela deveria ficar bem quieta, parada (sic). Fala de um sentimento de que todos a estão perseguindo e todos sabem de seu “passado condenador”. Diante desses novos acontecimentos, é necessário retornar com a medicação neuroléptica (atualmente a paciente encontra-se medicada com 1mg de Stelazine2), e reorientar a conduta analítica. A restabilização da paciente se dá quando a paciente retorna ao comportamento reconhecido como normal pela família, marcado pela observância contínua das práticas religiosas.

1 Nome fictício 2 Medicamento antipsicótico típico
Uma cuidadosa coleta da história clínica da paciente foi possível depois que a paciente começou a relatar suas experiências e falar de seu passado, mesmo que de forma confusa e contraditória. Dessa forma um padrão de desencadeamentos pôde ser estabelecido: sempre que a paciente fazia tentativas de emancipação das normas, tanto religiosas quanto paternas, sobrevinha os fenômenos alucinatórios e idéias persecutórias. Esta configuração clínica suscitou a seguinte hipótese: Seria esta identificação à norma uma forma de suplência, que se apresenta como um delírio de hipernormalidade?

Chamamos delírio de hipernormalidade, pois trata-se aqui de uma normalidade estereotipada, rigorosa, sem desvio, sem folga, completamente engessada no discurso normativo do Outro (Laender, 2008). Segundo McDougall (1983) o sujeito, nestas condições, é a encarnação da norma, as coisas são como são, as regras foram feitas para serem seguidas. O sujeito se atém aos significantes e desconhecem a multiplicidade de sentidos engendrados pela metáfora. A metonímia se dá comandada por uma repetição alienada no dizer do Outro, representado pelo social ou por uma figura de liderança. A autora também menciona que esses pacientes possuem um sistema de crenças que serve de explicação-chave para os seus problemas. Esse sistema de crenças deve permanecer inalterável, imutável, para que seu mundo se sustente.
Acreditamos que no caso clínico aqui tratado, por conta de uma carência simbólica, a paciente se identifica com um ideal religioso que lhe serve de base identificatória permitindo que ela escape às perguntas “quem sou eu para o Outro?”, “o que o Outro quer de mim?” Esse tipo de identificação impossibilita entrever o fantasma ao tamponar a relação com o objeto.
A estabilização se daria então, através de uma compensação imaginária, por meio de um enodamento entre o imaginário e o real3, sob a forma de uma identificação maciça ao outro especular. Esta compensação imaginária apareceria, por conseguinte, como um sintoma que estabiliza e reorienta a vida do sujeito.

Na sessão clínica de Aix-Marseille-Nice, na Convenção de Antibes (1999), esta questão foi nomeada de sobreidentificação. Ela é observada principalmente em sujeitos pré­melancólicos que apresentam traços muito mais normativos do que vinculados ao ideal do eu. Quando ocorre uma contradição entre dois traços, muito freqüentemente, sobrevem o desencadeamento. São traços indicativos de uma identificação literal ao traço significante e não com a sua função de representação. Esses traços, tomados do Outro, não são advindos do eu (moi), mas da norma social. Ocorre aqui uma efetividade imaginária que articula a
3 Real, Simbólico e Imaginário, RSI, é uma tríade de registros, construída por Lacan, para apreender o inconsciente estruturado como linguagem. Mais tarde, em sua obra, Lacan, pensará o inconsciente por meio da topologia dos nós, em que estes registros se amarrariam, assegurando a consistência do conjunto.

identidade do sujeito a uma adequação biunívoca entre sujeito e sua imagem. O desencadeamento ocorre quando a cobertura imaginária é colocada em questão e a estabilização se dá com uma nova aderência imaginária, reconstruindo as identificações.
É importante mencionar que a conduta terapêutica neste caso se orientou por suportar, por parte da analista, a debilidade da paciente, no sentido de refrear o desejo terapêutico, respeitando a solução estabilizadora encontrada pela paciente.

Referências Bibliográficas:
DEFFIEUX, J.P. SAGNA & CAROLE D.L. (1999) La psychose ordinaire: La convention D’Antibes. Paris: Agalma.

MCDOUGALL, J. (1983). Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.

LAENDER, N. R. (2008) “A hipernormalidade como um problema diagnóstico: Impasses, alcances e limites.” Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação Psicologia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.


 
  Arquivo em PDF do artigo  
 
Revista N° 11 .
. Editorial .
. Sumário .
. Artigos .
. Relato de Experiência.
 
 
 
. Corpo Editorial .
. Instruções aos Autores .
. Números Anteriores .
. Indexadores .
Topo da página
CliniCAPS - Todos os direitos reservados © - 2006